E em tanto falar de centelhas da esperança, recebi um belo comentário em uma intervenção visual que produzi para a Unidade Curricular de Sociologia da Educação em 2019. A ideia partiu de uma inquietação comum de milhares de estudantes periféricos: o tempo e desgaste causados pelos longos trajetos, dificuldades com transporte público e índices de evasão de estudantes trabalhadores. Ao levantar o estudo sobre a evasão nos Campi da Universidade Federal de São Paulo, criei um formulário para coletar informações dos estudantes do Campus Guarulhos de estudantes periféricos que deslocavam para o Bairro dos Pimentas. Os dados, implacáveis: de longuíssimos trajetos em quilometragem, distância e até três horas em apenas um percurso, aos que estão a pouca distância e sofrem com longos trajetos por dificuldades com a mobilidade urbana. Os desafios são muitos e diversos.
Segure as pontas, pois lá vem o bonde do pensamento.
Periferias distantes e a periferia de São Paulo: uma breve discussão
Paulo e Nicolau Januzzi (2000) escrevem acerca do crescimento urbano, saldos migratórios e atratividade social entre a década de 1980 e a chegada do novo milênio. Apontam o crescimento na região anelar mais periférica do leste, noroeste e sul da cidade de 13% ao ano ao longo da década de 1960. Corroboradas, as periferias somaram cerca de 43% do crescimento demográfico paulistano, em contraposição aos bairros centrais, onde o crescimento era inferior a 1% ao ano (JANUZZI & JANUZZI, 2000). Os números levantados pelos autores indicam um extenso processo de evasão populacional para os limites da urbis.
No caso de Cidade Tiradentes, os números mostram a taxa de crescimento elevada nas décadas de 1980 e 1990, tendo dobrado no período e continuado a crescer. As populações de mais baixa renda, atingidas diretamente pela valorização imobiliária e fundiária termina por deslocar-se para os rincões da cidade. Custos com moradia e custos de vida já figuravam na década de 1980 uma determinação de motivações de deslocamento dentro da região metropolitana (JANUZZI, 2000).
Marcos Rufino Silva (2008) em sua dissertação de mestrado coloca a periferia distante e aspectos sociais da urbanização e concentração populacional dessas localidades. Discorre sobre uma “segregação urbana” (RUFINO, 2008), onde o privado provém a urbanização para setores mais vulneráveis da sociedade nos locais “menos valorizados”. Estes locais, por sua vez estão distantes do cotidiano urbano, quando há urbanização. Locais onde, apesar de se encontrarem na cidade, vive-se a negação do urbano (RUFINO, 2008). Além da distância, tempo, dificuldades de mobilidade, ainda se encara todo tipo de perrengues: empregos, saúde, educação, cultura e lazer onde o autor chama de “periferia distante”, a margem da margem.
Ao retomar o histórico dos tensionamentos e disputas entre cultura e política, Martin Cezar Feijó, ao discorrer sobre o aprofundamento da luta de classes com a consolidação do movimento operário, coloca as a justificativas da classe dominante em inferiorizar a classe trabalhadora ao alegar a “falta de cultura” do operariado para advogar mudanças políticas (FEIJÓ, 1983). Van Zanten (2014) ao discutir a escola de periferia, propõe uma interpretação global dos processos locais da periferia através da análise da construção dos efeitos da segregação social. Aponta o caráter não apenas social, mas também étnico atrelado à segregação social na França. Ressalta o caráter de classe inferido nas representações negativas das periferias como um problema público. A autora aponta efeitos dos processos segregativos no sucesso escolar.
A marginalização das periferias identificada por Van Zanten corrobora com o pensamento de Feijó, de que as condições específicas de definição do que é tanto “popular” quanto “erudito” parte de quem detém a legitimidade sobre o saber e fazer artístico, político, escolar. Estudantes periféricos possuem obstáculos objetivos, considerando a segregação social e, no caso brasileiro, geográfica, espacial e territorial. Sua precariedade e contingente populacional contemplam uma complexidade de obstáculos de múltiplo caráter.
Considerando as periferias distantes, bairros ainda mais afastados do centro da cidade e que enfrentam ainda mais profundos efeitos da distância e dificuldade de locomoção, densidade demográfica, e acesso a emprego, equipamentos públicos e lazer. Até mesmo pelo fato de estes bairros serem historicamente classificados como "dormitórios" e não contam com empregos disponíveis para a população, condicionada a percorrer longas distâncias para trabalhar e que pode pagar apenas lugares cada vez mais afastados do cotidiano urbano, numa perpetuação e intensificação das desigualdades e de uma condição precária de existência.
Instituições, totalidade e realidade
Dayrell (2007) levanta a discussão sobre uma crise da escola em estabelecer relação com a juventude e, portanto, entre professores e jovens (DAYRELL, 2007). Propõe caminhos para a compreensão de tais realidades por reforçar que a relação escolar não se reduz aos indivíduos e grupos que compõe a instituição escola e o ambiente escolar, mas de um conjunto de modificações nas sociedades e nos processos de socialização destas e seu potencial de interferência nos cotidianos escolares. José Luiz dos Santos (1983) expõe a totalidade da cultura e dos processos culturais de uma sociedade, onde afirma:
Cultura é a dimensão do processo social, da vida de uma sociedade. Não diz respeito apenas a um conjunto de práticas e concepções, como por exemplo se poderia dizer da arte. Não é apenas uma parte da vida social... [...] Não se pode dizer que a cultura é algo independente da vida social, algo que tenha a ver com a realidade que onde existe. Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e não se pode dizer que ela exista em alguns contextos e não em outros. (SANTOS, José Luiz dos. 1983 p. 44-45)
Ao considerarmos a vida na periferia, presume-se que seja levada em conta a condição de ampla exclusão social, altos índices migratórios e ausência de políticas públicas. Ainda que um período intensificado o processo de urbanização e inéditos equipamentos culturais tenham atingido as regiões, parecem não fazer parte do cotidiano, ou não dão conta do enorme contingente populacional. As lacunas ainda são profundas pois advém de profundos problemas estruturais. Décio Saes (2008) ao analisar a escola pública e classes sociais no Brasil observa o interesse de classe como fundamental para a manutenção e intensificação da valorização de setores médios e de elite econômica (SAES,2008). Ora, uma vez mantidas as relações de dominação e privilégios e ao custo de uma maior precarização das políticas públicas e sociais, inferem em um intenso aprofundamento das desigualdades e intensificação das relações de dominação.
A pesquisa “Viver em São Paulo: Cultura” (2018) executada em parceria do IBOPE e Rede Nossa SP traz dados sobre os hábitos culturais da população da cidade de São Paulo. Os números mostram que 24% da população da cidade não frequentou ou não frequenta nenhuma atividade cultural.
Figura 1: Imagem da pesquisa IBOPE/Nossa Rede São Paulo mostra por região quais fatores dificultam a assiduidade em atividades culturais. Fonte: Nossa Rede São Paulo.
Considerando as densidades demográficas e ainda maior escassez de atividades, equipamentos e dificuldades na locomoção, o extremo Leste composto majoritariamente por conjuntos habitacionais possuem desigualdades ainda mais profundas em comparação com o restante da região Leste. Locais como Cidade Tiradentes e Cohab II possuem condições específicas em relação a hábitos culturais.
Geraldo Leão (2006) discute a condição de jovens que usufruem da expansão da escolarização mas que experimentam o acesso a educação de forma desigual. O faz através de uma pesquisa com jovens da periferia de Belo Horizonte atendidas pelo Programa Serviço Civil Voluntário. Através de uma perspectiva dos estudantes enquanto sujeitos ativos diante das desigualdades sociais.
“A decisão entre continuar ou parar os estudos e a disposição maior ou menor para retomá-los depende de uma série de condicionantes que os próprios jovens interpõem aos planos de voltar à escola. Alguns associam conseguir um emprego ao voltar a estudar. Outros estão estudando, mas se envolvem minimamente com a vida escolar. Para alguns, ainda, voltar a estudar é um projeto remoto.” (LEÃO, Geraldo, 2006, p. 36)
Se debruça no autor francês François Dubet (1998) para elencar tipologias acerca da subjetivação da experiência escolar, da relação com os saberes e da concepção de utilidade de jovens pobres. Para Leão, a motivação dos jovens ante a experiência escolar se dá a partir da forma como cada um “elabora sua experiência de crescer em meio à desigualdade social e do significado que a educação irá adquirir em sua vida” (2006, p.36)
Tragtemberg (2018) aponta como preocupação central da educação na contemporaneidade formar indivíduos cada vez mais adaptados a seu local de trabalho, além de capazes de modificar seu comportamento em função das mutações sociais, cada vez mais aceleradas com o desenvolvimento das TICs. Contudo, as transformações nos processos de socialização e desenvolvimento tecnológico por si só não alteram as condições de classe e dominação.
A dissimulação do processo de descentralização da lógica gerencial nas escolas não tiveram parte num processo de democratização desses espaços. Como afirma Laval, “o fim político, com efeito é fazer a escola uma máquina eficaz a serviço da competitividade econômica” (LAVAL, 2004), de forma que a inserção da lógica empresarial nas escolas de periferia proporcionam uma integração inferiorizante, uma vez que, em uma sociedade desigual a meritocracia acentua e aprofunda as desigualdades. A lógica de organização gerencial possui o objetivo de gerar uma escola como uma empresa (LAVAL, 2004) e se estabelece através da diminuição de custos e junto ao controle do processo e limitação da autonomia tanto de professores quanto de alunos, num movimento que retroalimentação e reprodução das segregações sociais. Tal lógica serve ao processo de burocratização escolar, que junto à pedagogia burocrática possuem objetivo não o acúmulo e articulação dos saberes, mas sim o êxito no sistema de exames (TRAGTEMBERG, 2018).
Tanto a escrita deste texto quanto a intervenção partem do desejo de expressar visualmente a angústia da iminência de saber que deverá passar por aquela jornada e que ela é inevitável. Aceitar os termos de uso do sofrer em nome do saber. Pouco se fala sobre a perseverança de um estudante de periferia.
São Paulo, 02 de Setembro de 2020
DUBET, François. "A escola e a exclusão". Tradução por Neide Luzia de Rezende. Cadernos de Pesquisa, n. 119, p. 29-45, julho/ 2003
LEÃO, Geraldo M. P. Experiências da desigualdade: os sentidos da escolarização elaborados por jovens pobres. Educação e Pesquisa, n. 1, v.32, p.31-48, jan/abr., 2006.
JANNUZZI, Paulo de Martino; JANNUZZI, Nicoláo. Crescimento urbano, saldos migratórios e atratividade residencial dos distritos da cidade de São Paulo: 1980-2000. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S.l.], v. 4, n. 1/2, p. 107, maio 2002.
LAVAL, Christian. O novo “gerenciamento educativo”. In A escola não é uma empresa. O neo-liberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Editora Planta, 2004
SAES, Décio. Escola Pública e Classes sociais no Brasil atual. Linhas Críticas, Brasília, v. 14, n. 27, p. 165-176, jul./dez. 2008
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura?. Editora Brasiliense. São Paulo,1983
VAN ZANTEN, Agnès. L´école de la périphérie (a escola da periferia) revisitada. KRAWCZYK, Nora (org.) Sociologia do ensino médio. São Paulo: Cortez, 2014